Álbum duplo da Orquestra Errante lançado pelo Selo Berro em maio de 2020.
Orquestra Errante Vol. 1
Orquestra Errante Vol. 2
Gravar improvisações livres?
Talvez esta seja uma atividade contraditória e sem sentido uma vez que uma das características deste tipo de prática musical é a sua irreversibilidade: as performances são sempre únicas e irrepetíveis na medida em que se relacionam primordialmente com o tempo, o espaço e as condições específicas de sua realização. Não há um referente criado anteriormente (um tema, uma estrutura harmônica, uma forma definida, etc.), não existe um regente ou um compositor…
A improvisação livre é um espaço de relações e de presença e seu agenciamento é composto de vontades, sensações e emoções que interagem em tempo real. Além disso, os agentes são não só humanos (os/as performers com suas biografias pessoais e musicais, seus desejos e expectativas no momento da performance), mas também não-humanos (os instrumentos, equipamentos, microfones, arquitetura, condições acústicas do momento, o clima etc.) e o fundamental é o que se passa entre todos estes componentes. Por isso dizemos que o contexto agencia o texto e que este é produzido coletivamente e em tempo real. A proposta original da Orquestra Errante é justamente a preparação de um ambiente propício a este tipo de prática musical.
Mesmo assim, podemos apontar aspectos positivos: a gravação pode ser pensada como uma memória ou um registro, como uma foto ou um filme. Ao ouvir a gravação de uma improvisação livre temos uma ideia dos agenciamentos, das forças em jogo, das negociações e das conversas. E entender estes agenciamentos é muito mais relevante do que emitir algum eventual juízo de valor estético sobre os resultados sonoros das performances. Aqui a dimensão estética está intimamente ligada à dimensão ética. É claro que nessa escuta se perde aquilo que só é possível vivenciar no momento mesmo da performance. Mas a escuta de uma gravação também é uma espécie de repetição que recupera a diferença e que possibilita outros tipos de agenciamento que podem incluir pessoas (ouvintes) que não testemunharam a performance. Por isso, pode valer a pena sim, gravar improvisações livres.
Mas há um outro aspecto importante das gravações e que se relaciona com o fato de que a OE não se dedica somente à improvisação livre. O grupo, que almeja a preparação e a manutenção de um espaço horizontal e democrático, se dedica também a outras formas de criação experimental coletiva realizando performances em que o tempo real convive com algum grau de preparação anterior. Na gravação do nosso CD, todxs xs membrxs da OE puderam preparar, coordenar e produzir alguma proposta. Cada uma dessas propostas – nos mais diversos formatos – foi apresentada e discutida pelo grupo antes de ser gravada e se tornar uma faixa do CD (é importante dizer que nem todos fizeram propostas e que cada proposta é devidamente explicada por seus proponentes nos textos que acompanham o CD). Nesse processo, a OE incorporou práticas que são possibilitadas pelo estúdio de gravação, utilizando o que é próprio desse ambiente (overdubs, edições, mixagens etc.)
Por tudo isso, acreditamos que o ambiente criativo do grupo também se coloca como um espaço de resistência. Gostamos de pensar que os agenciamentos que ocorrem neste ambiente funcionam como uma estratégia de insurgência contra as capturas do desejo promovidas pelo capitalismo neoliberal. Essas capturas se baseiam na disseminação dos certos valores – egocentrismo, individualismo, meritocracia, consumismo, produtivismo e mercantilização de tudo – que no Brasil são sustentados por um discurso de ódio caracterizado pela intolerância, racismo, misoginia, machismo e homofobia. Esse novo formato de neoliberalismo associado ao neofascismo promove a colonização do desejo, capturando-o para torná-lo impotente e cativo. O desejo assim corrompido é usado para reproduzir o status quo, contribuindo para a composição de novos cenários para a acumulação de capital.
Um exame detalhado dos agenciamentos deste nosso laboratório de criação e improvisação que é a OE revela modos de micro-cooperação política que estabelecem uma espécie de pragmática clínico-estética-política entre seus membros, que atua como uma espécie de antídoto contra essa corrupção do desejo empreendido pela macro e micropolítica do capitalismo contemporâneo.
Rogério Costa, Coordenador
Mais informações sobre cada faixa dos dois volumes do álbum em: https://berro-nusom.bandcamp.com
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